A noite vem, e as árvores se movem delicadamente. A última
folha de outono cai e eu acredito estar nos últimos dias da minha vida. Não
tenho mais nada em mãos. Meus pulmões estão gastos pela juventude e pelo
tabagismo. Eu me chamo Violeta,e não há ninguém, digo,ninguém mais aqui,apenas
eu e a minha casa escura .Penso ter visto algum espectro passar, mas acho que
eu apenas pensei sobre isto. Às vezes eu olho para trás e me lembro de toda a
minha vida,se é que eu tive uma vida. Na minha juventude eu sonhava em
trabalhar como fotógrafa,eu me sentia nova em folha,como a seiva bruta que corre
pelas entranhas das arvores. Eu não pensava em me casar, nem em ter filhos. Não
pensava em viver uma vida comum e padecer como um botão de rosa não desabrochado,
eu penso que talvez o tempo tenha me corroído um pouco, me corroído por dentro.
Eu havia chegado a maior idade e eu sentia como se houvesse tomado um soco no
estomago, e mesmo assim ele ainda se mantinha repleto de borboletas. O meu
irmão mais velho havia sido enviado para o exercito, para servir a guerra. Eu
acalentava a minha mãe que chorava na cozinha, enquanto ele desaparecia no
horizonte. Pouco tempo depois,eu sai de casa e fui morar na capital,para cursar
faculdade de fotografia e saborear novas experiências que eu nunca iria vivendo
naquela cidadezinha qualquer,quase que perdida no mapa. Ao chegar naquele bravo
e recém-nascido mundo,eu me sentia viva novamente,a ventania tocava os meus
cabelos e eu me sentia recarregada para começar a tecer os fios da minha
jornada. Eu havia aceitado o convite de Dione, uma velha amiga de infância,para
morar junto com ela. Era um humilde apartamento, não mantinha em sua posse
muitas mobílias,eu a ajudava a pagar o aluguel. Nós passávamos algum tempo juntas,
fumávamos alguns cigarros,bebíamos vinho e ouvíamos alguns discos em sua
vitrola,a musica inebriava as nossas mentes após um longo e duro dia de
trabalho,era como uma suave anestesia.Com o passar do tempo a nossa amizade
cresceu e por influência dela eu acabei aderindo ao movimento feminista, que
estava em alta naquela década. Eu era jovem, selvagem e não temia as
assombrações que pudessem aparecer caminho adentro. Nós corremos alguns riscos,
mas nós sempre estávamos ali,de pé,rumo a luta. Naquele mesmo ano,conheci Ganimedes,
o primeiro homem que eu amei. Ele era alto,cabelos claros e vivia como se não
houvesse amanhã. Através dele pude viver a experiência de experimentar alguns
entorpecentes, como novocaína e sementes de dátura, sentia como se meus pés ganhassem
pequenas asas,como as sandálias de Hermes,me sentia fora da minha mente,meu
espírito tornava-se leve como uma pena no ar,soprada pelo ar da vultuosidade. Nosso
romance não durou muito tempo,porque ele foi assassinado enquanto caminhava na
madrugada,a caminho da sua casa. Havia acabado de sair do apartamento que eu
dividia com Dione, ele apenas se levantou da cama, vestiu suas roupas,se
despediu de mim com um pequeno beijo nos lábios e foi embora,esta seria a
ultima vez que eu o veria. Depois dele não apareceu mais ninguém. Após este
acontecido eu entrei em profunda melancolia e resolvi abandonar a faculdade,
não havia em mim ímpeto para seguir em frente. Ao deixar tudo pra trás, resolvi
trabalhar como dançarina numa boate no centro da cidade,foi uma experiência
conturbada,eu ganhava uns míseros trocados por fazer a minha simples dança,sob
o pseudônimo de “Belladona Calandiva”,não queria que me chamassem pelo meu nome
verdadeiro,eu não gostava daquela profissão. Naquela mesma época acabei
sofrendo abuso sexual,foi uma experiência terrível. Dione não concordava com
essa minha profissão e dizia “Você não está agindo como uma feminista”,Mas o
que eu poderia fazer, eu era jovem,perdida,imatura. Logo larguei este oficio e
resolvi me reconciliar com Dione, aderindo seriamente ao movimento feminista.
Nós protestávamos severamente pelos direitos das mulheres, mas uma vez nos
fomos detidas por um batalhão de choque,eu fui atingida no olho e Dione foi
atingida na cabeça,morrendo imediatamente. Eu chorava desesperada, a segurando
nos braços,minhas roupas estavam manchadas pelo seu sangue e pela tempestade
que caia. Foi uma grande perda,ela era como uma irmã para mim. Após os meus
anos naquele novo mundo,eu resolvi voltar para o meu pequeno local de origem.
Foi divertido atirar nas estrelas,pairar sob o sol,mas havia sido uma longa
estada,tudo que eu queria era voltar para casa. Ao chegar fui recebida pela
minha mãe,que logo me deu a noticia que o meu irmão havia sido dado como
desaparecido na guerra,nos duas choramos e nos abraçamos,nos tivemos que nos
resignar e aprender a lidar com a perda. Vivi naquela vida pacata por alguns
anos até que a minha mãe faleceu,foi a sabor mais amargo que senti na minha
vida,não havia mais nada,mais ninguém. Então agora estou eu aqui escrevendo
esta carta,como um televisor emitindo o seu chiado em um quarto empoeirado. O
que quer que tenha acontecido,com a vida que conhecíamos,poderíamos viver uns
sem os outros?
Hamilton Guilherme